A construção de um novo sistema harmónico no Século XV

Com a transição do Século XIV para o Século XV, e na sequência das enormes convulsões sociais e políticas que avassalam a Europa de então, surge na Europa Continental, em grande parte por influência Inglesa, um novo tipo de harmonia baseada numa concepção mais integradora do conjunto harmónico, a qual contrasta com o sistema harmónico até então utilizado, baseado sobretudo no intervalo e na utilização de várias camadas harmónicas sobrepostas, cada uma constituída por um par de vozes. Vai ser com a chamada Guerra dos 100 anos -- normalmente situada pelos historiadores entre 1337 e 1453, e desencadeada por uma questão na sucessão dinástica do trono francês a quando da morte de Carlos IV, em 1328 --, que surge na Europa Continental uma forte influência Inglesa, nomeadamente com a adopção de uma técnica de chamado falso bordão -- expressão derivada provavelmente do francês medieval fors bordon --, que consiste na harmonização de uma melodia por uma sucessão de terceiras e sextas harmónicas, dando origem à sucessão daquilo que hoje consideramos ser um conjunto de acordes triádicos na primeira inversão.
Na comparação da música escrita por compositores do chamado período da Ars Nova, ainda no Século XIV -- como é o caso de Guillaume Machaut (ca. 1300 a 1377) --, e de compositores da primeira geração franco-flamenga -- como Guillaume Dufay (1397 a 1474) --, ou que directamente a influenciaram -- como é o caso de John Dunstable (ca. 1390 - 1453) que esteve ao serviço do Duque de Bedford entre 1422 e 1435 durante o período em que este é regente de França --, nota-se uma clara diferença na forma como a harmonia é construída, marcando este um período de clara mudança no estilo musical praticado na Europa Continental. Esta diferença situa-se em grande parte numa alteração profunda na forma como a harmonia do conjunto de vozes é concebida, algo que, para além de implicar numa alteração nítida da sonoridade produzida pelo conjunto de vozes, em grande parte deriva a sua génese da influência produzida pela técnica de falso bordão. Claro que hoje se torna um pouco difícil estabelecer uma clara relação de casualidade entre o aparecimento desta técnica e esta transformação sentida na forma como a harmonia passa a ser engendrada no Século XV. Mas não deixa de ser nítido o paralelo existente entre ambos os processos históricos aqui referenciados.
A este propósito, ouça de forma crítica e comparativa, os seguintes exemplos de obras de compositores dos Séculos XIV e XV acima referenciados:

1. Guillaume de Machaut. Missa de Notre Dame: Agnus Dei


2. Guillaume de Machaut. Rose, Liz, Printemps, Verdure


3. John Dunstable. Ave Maris Stella


4. John Dunstable. Beata Mater a 3 voci


5. Guillaume Dufay. Tibi, Christe, Splendor Patris


6. Guillaume Dufay. Missa para Santo António de Pádua: Kyrie